O sábado foi de expectativa frustrada. Policiais e bandidos continuavam naquela batalha distante, portanto, no fim do dia, entre os jornalistas, já era dado como certo que o domingo seria o dia da ocupação.
Todos os repórteres foram convocados para trabalhar, mas como eu já estava de plantão, fiquei com a missão de ser a primeira equipe. No jornalismo diário, na maioria dos casos, a primeira equipe a chegar é uma das últimas a sair. Isto porque as grandes reportagens, as melhores histórias, quase sempre acontecem pela manhã. Nesse dia não foi diferente.
Às cinco horas da manhã de domingo eu, o cinegrafista Sergio Colonesi e o auxiliar Edeilton Macedo saímos com destino ao Morro do Alemão. Seguíamos no carro blindado, com o colete à prova de balas, mas confesso que todo esse aparato não diminuía o frio na barriga diante da expectativa de estar prestes a viver o que prometia ser um momento histórico e extremamente violento.
Pouco antes de chegar, nossa equipe já teve uma mostra do que poderia vir. Estávamos a poucos metros do morro do Alemão. Os policiais ainda cercavam os acessos, a ocupação não tinha começado, mas o confronto sim. No morro do Adeus, favela que fica ao lado do Alemão e que era então dominada pela mesma facção criminosa, policias e traficantes trocavam tiros. Paramos o carro a poucos metros, o cinegrafista Sergio Colonei já saltou com a câmera em punho, como uma arma pronta para disparar. Eu ainda fiquei alguns segundos no carro, respirei fundo e saí agachada. Parei próximo a um bar onde moradores tentatavam se proteger: eram homens que tinham saído para trabalhar, senhoras que tentavam chegar na igreja, mulheres que foram comprar pão. Todos estavam ali parados, imobilizados pelos disparos.
Quando os tiros cessaram, eu saí na rua para conversar com essas pessoas que tentavam chegar ao seu destino. Falei com um gari que estava indo para o trabalho. Ele, coitado, gaguejava de tão nervoso. Depois, abordei uma senhora que estava indo até um ponto de ônibus para visitar parentes. Ela parecia não ter idéia do que estava acontecendo, e justamente no meio da entrevista, os disparos recomeçaram. A senhora continuou de pé, com o olhar perdido até que eu a puxei para trás de uma construção metálica onde, acredito, devia funcionar um chaveiro ou algo assim. Toda a cena foi registrada pelo bravo cinegrafista Sergio Colonesi que não parou de filmar mesmo estando na linha de tiro. Lembro de que nesse momento olhei o relógio.
Eram 6h30 de domingo. Para a maioria das pessoas o dia ainda não tinha começado e lá estava eu, agachada no chão, tentando trabalhar sem ser atingida por um tiro.
Depois de dez minutos, o tiroteio deu uma trégua e pudemos avançar. As tropas das forças Armadas e das polícias federal, civil e militar já estavam a postos. O Morro do Alemão tem mais de vinte pontos de subida, mas para registrar a ocupação, nós tínhamos que escolher apenas um. Acabamos optando por ficar onde estava a maior quantidade de policiais e também onde estavam os mais graduados.
Pontualmente, às 8h da manhã, eles começaram a subir. Eu seguia atrás. No início , ouvimos alguns disparos. Duraram cinco minutos e então paráram. Enquanto subíamos, víamos as ruas desertas, ocupadas por motos abandonadas e por barricadas erguidas pelos traficantes. Eles usaram pneus e até construíram blocos de concreto para impedir a subida de carros da polícia. Também destruíram parte do asfalto, abrindo verdadeiras crateras, como denunciara a moradora dois dias antes.
Os obstáculos barravam os caveirões, como são conhecidos os carros blindados da polícia, mas não impediam o avanço dos blindados das Forças Armadas. Como tinha acontecido na Vila Cruzeiro, a polícia ocupou em pouco tempo o Morro do Alemão. O banho de sangue previsto por jornalistas, especialistas e até pelas autoridades, não aconteceu.
Os bandidos fugiram, escaparam sob circunstâncias que até hoje continuam sem respostas. Mas o fato é que, para aqueles moradores, uma nova realidade tomou forma a partir daquele domingo. Aos poucos, eles começaram a sair nas ruas. A maioria não queria ser filmada, temia ser repreendida por traficantes que poderiam voltar, mas, longe das câmeras, aplaudia a chegada da polícia. Literalmente. Em quase uma década cobrindo operações da polícia em diferentes favelas do Rio, nunca tinha visto algo assim.
A receptividade dos moradores evidenciava a angústia que eles tinham passado. O terror imposto por bandidos silenciou por décadas milhares de cidadãos que viveram os últimos anos à margem da lei. No morro do Alemão moram cerca de 400 mil pessoas, é mais do que em muitas capitais do Brasil.
Lembro de ter conversado com um senhor de cerca de 70 anos. Ele tinha uma casa de três andares em um dos acessos à favela. Contou que começou a construir o imóvel há 40 anos. Na época, trabalhava como motorista e achou que ali seria um bom lugar para a família viver. O tempo passou e a vizinhança tranquila se transformou em uma das favelas mais violentas do Rio. Os traficantes construíram na porta da casa dele uma "casamata". Obrigaram pedreiros que moravam no morro a erguer a proteção feita com concreto maciço. E de lá, observavam e atiravam na polícia. Passavam a madrugada consumindo drogas, ouvindo música no último volume.
O senhor via e ouvia tudo. Nem ele, nem a família, que incluía um neto de poucos meses, conseguia dormir direito, mas ninguém podia falar nada. No território dominado pelos criminosos, a expressão Lei do Silêncio tem outro significado. Aquele senhor teve que se manter calado por tantos anos que mesmo com a favela tomada pela polícia, ele não quis dar entrevista. Mas, a imagem dele aplaudindo a chegada dos policiais do último andar de casa acabou ficando gravada, aqui na memória.
Neste endereço eletrônico, você consegue assistir à reportagem que mostra passo a passo como foi a ocupação da polícia no Conjunto de favelas do Alemão.
http://www.youtube.com/watch?v=_l5xE90NnO8&feature=related
ESTA HISTÓRIA CONTINUA EM " O DIA SEGUINTE"